Por Tales Pinto
Um aspecto interessante do estudo da história é a tentativa de encontrar nos textos míticos e religiosos elementos que justificariam a realização de práticas e comportamentos pelos povos que os criaram. Nesse sentido, pensar a aliança estabelecida entre Abraão e o Deus hebreu é entender a constituição desse povo como tendo sido realizada a partir de um pacto, no qual os homens dedicariam a vida ao Deus monoteísta, abandonando a idolatria a diversos deuses, praticada pelos antepassados de Abraão. Em troca, receberiam as graças desse mesmo Deus, sendo abençoados e protegidos contra os que viriam a amaldiçoá-lo.
No caso dos hebreus, esse pacto inicial, de formação do povo, baseou-se no abate e corte de corpos de animais para a realização de rituais, conhecidos em hebraico como brit habetarin, a aliança dos pedaços. Após várias provações, o Deus hebreu prometeu a Abrão (ainda com este nome) a possibilidade de gerar descendentes. Assim, Abrão passou a realizar o antigo ritual de abate de animais em homenagem ao Deus hebreu. Apesar de achar que pela idade avançada não conseguiria procriar, Abrão realizou o procedimento ordenado, mostrando mais uma vez sua fé em Deus. Segundo Moacir Amâncio, o ritual de passagem pelos corpos decompostos dos animais portando uma tocha ecoava um costume do tempo e a partir dali “estava selado um pacto, como diz a Bíblia: ‘Naquele dia Deus estabeleceu uma aliança com Abrão’, prometendo para sua posteridade a terra que se estendia do rio do Egito até o grande Rio, o Eufrates” [1].
Posteriormente, a aliança se estreitou com a adoção de uma prática ritual que retirava uma pequena membrana do corpo humano, através da realização da circuncisão, que deveria ser feita nas crianças no oitavo dia de seu nascimento, mas que Abrão realizou por volta dos noventa anos. A tradição da circuncisão vem sendo mantida desde as origens do povo judeu, como mais um dos elementos do pacto realizado com Deus. Segundo a passagem bíblica, Deus teria dito: “E eis a minha aliança, que será observada entre mim e vós, isto é, tua raça depois de ti: que todos os vossos machos sejam circuncisados. (...) Minha aliança estará marcada na vossa carne como uma aliança perpétua”. Com este ritual sendo perpetuado, a aliança entre o povo hebreu e seu Deus era mantida. Como curiosidade, antes do momento da circuncisão, o Deus ainda ordenou a alteração do nome de Abrão e de sua esposa, pois, como Abraão, Deus faria dele pai de uma multidão de nações e Sarai passou a ser chamada Sara, cujo significado é princesa. [2]
Mas a prova final da fé que definitivamente selaria a aliança foi o sacrifício de Isaque, seu filho único. Deus pediu que Abraão, já centenário, cometesse o holocausto de seu adorado filho, o que o ancião se preparou para fazer sem questionar. Entretanto, Abraão foi interrompido antes da execução através da aparição de um anjo. A realização do ato hediondo era a prova final de fé, entregando Deus a benção sobre a humanidade como consequência do cumprimento do acordo, estabelecendo assim a aliança.
Os rituais que selam as alianças podem ser entendidos, nesse caso, como formas de representação, de ilustração, utilizados para mostrar a necessidade de se adotar certas regras de comportamento social entre as pessoas. Os pactos seriam o estabelecimento de limites de atuação social, pelos quais os homens poderiam agir e cujo parâmetro seria o próprio pacto inicial, estabelecido entre a divindade e o patriarca, aquele que gerou com seus descendentes uma civilização, destinada com a prova da fé a habitar certa região geográfica do globo terrestre durante um período temporal extenso até o momento da salvação. Essa interpretação possibilita ver estes comportamentos como base das relações sociais, através das quais os eixos estruturantes da existência social se dão, possibilitando a reprodução ao longo do tempo da existência coletiva de grupos sociais, expressando essas lendas, como a de Abraão, a fundamentação histórica daquelas práticas que cimentam a organização social. Mas a história é dinâmica e as ações mudam com o passar do tempo. Talvez por isso fosse necessária uma nova aliança, através dos dez mandamentos.
[1] Revista História Viva, Grandes Religiões 2, Judaísmo. p. 8-10.
[2] Idem.Ibidem.