O medo do escravocrata e a Revolta Malê de 1835

Apesar de ter durado apenas um dia, a Revolta Malê levou novamente ao medo de uma insurreição dos africanos contra a ordem escravocrata.
Pintura de Johann Moritz Rugendas (1802-1858) retratando o porão de um navio negreiro.*

Por Tales Pinto

A Revolta Malê ocorrida em 25 de janeiro de 1835, em Salvador – Bahia, inseriu-se na série de revoltas que colocaram em perigo o Estado imperial brasileiro durante o Período Regencial (1831-1840). Não tanto pela sua duração, mas sim por sua composição e ameaça à sociedade escravocrata.

A Revolta Malê foi uma revolta organizada e dirigida por africanos, escravizados ou livres, cujo objetivo era a abolição da escravidão e a africanização da Bahia. A revolta fez surgir novamente o medo junto à classe exploradora escravocrata brasileira da repetição em solo nacional da Revolução do Haiti, que exterminou e expulsou da ilha das Antilhas quase toda a população branca.

Outra característica peculiar da Revolta Malê foi o fato de os escravos que dela participaram serem em sua maioria muçulmanos. Malê era o nome dado a todo escravo, de qualquer etnia, que professasse a religião muçulmana e soubesse ler e escrever em árabe. Além disso, a maioria dos participantes, graças a essas atribuições, cumpria principalmente a função de escravos de ganho, destinada a executar serviços urbanos remunerados, conseguindo dinheiro para seus senhores.

É interessante ler um extrato do relato do chefe de polícia de Salvador, Francisco Gonçalves Martins, publicado no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, em 10 de fevereiro de 1835:

a insurreição estava tramada de muito tempo, com hum segredo inviolavel, e debaixo de hum plano superior ao que devíamos esperar de sua brutalidade e ignorancia. Em geral vão quasi todos sabendo ler e escrever em caracteres desconhecidos, que se assemelhão ao Arabe, usado entre os Ussás, que figurão terem hoje combinado com os Nagós. Aquella Nação em outro tempo foi a que se insurgio nesta Provincia por varias vezes, sendo depois substituida pelos Nagós. Existem mestres que dão lições, e travão de organisar a insurreição, na qual entravão muitos forros Africanos, e até rios.”

“Tem sido encontrados muitos livros, alguns dos quaes, diz-se, serem preceitos religiosos, tirados de misturas de sectas, principalmente du Alcorão. O certo he que a Religião tinha sua parte na sublevação, e os chefes fazião persuadir aos miseraveis, que certos papeis os livrarião da morte, d’onde vem encontrar-se nos corpos mortos grande porção dos direitos, e nas vestimentas ricas e exquisitas, que figurão pertencer aos chefes, e que forão achados em algumas buscas.”¹

O chefe da polícia aponta o fato de os negros serem principalmente das nações nagô e ussás (ou hauçá) e com unidade construída entre eles em decorrência da religião e da alfabetização. Esses africanos organizaram ainda outras revoltas na província, o que permite perceber que a Revolta Malê foi uma dentre outras revoltas escravas.

A revolta havia sido organizada com certa antecedência e contava ainda com a participação dos negros forros, os que haviam recebido sua alforria. O fato de o chefe de policia indicar que a religião tinha parte na sublevação e que a participação poderia livrá-los da morte pode indicar que a Revolta Malê fosse também um caso de jihad, a guerra santa contra os não muçulmanos.

Mesmo com a organização realizada com antecedência, a revolta não logrou sucesso. A previsão era o ataque aos prédios do governo, principalmente os edifícios ocupados pelas forças policiais e militares. A data foi escolhida em razão de haver uma festa católica, a de Nossa Senhora da Guia, e também por ser o dia do Qadr, o dia da revelação corânica². O objetivo era realizar o assalto aos prédios na aurora do dia 25 de janeiro. Porém, uma denúncia feita às forças policiais, possivelmente por duas escravas libertas que souberam da ação um dia antes, levou à precipitação do ataque.

Uma casa onde se reunia cerca de 60 escravos foi invadida pela polícia. Os africanos, ameaçados de serem pegos, partiram para o confronto com as forças policiais munidos de espadas e facões, além de poucas armas de fogo. Durante a madrugada e o dia seguinte, a capital da província da Bahia foi sitiada pelos revoltosos. Porém, a cavalaria e mais tropas que vieram em reforço conseguiram conter a revolta. Alguns conseguiram fugir pelo Recôncavo, atacando os canaviais, mas também foram contidos nesses espaços.

Estima-se que cerca de 600 a 1500 africanos participaram do levante. Dezenas foram mortos e muitos foram presos, castigados e deportados. Torturas e açoites compuseram as formas de punição, principalmente aos libertos, já que os escravos ainda tinham funções produtivas a cumprir.

Contrariamente a outras rebeliões coloniais e do Período Imperial, a Revolta Mal ê foi composta exclusivamente por africanos, sem a direção de brancos. Esse fato que proporcionou o grande impacto e medo na população baiana e brasileira livre do período. Um comentador anônimo que presenciou a rebelião, no jornal Pão D’Assucar, publicado no Rio de Janeiro, em 10/02/1835, ilustrou com suas palavras a apreensão de parte da população do Império: “Avalia agora por aqui o risco que corremos com semelhante gente, e o que ainda poderemos soffrer um dia, se não tivermos sempre a mais rigorosa cautela”³.

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* Crédito da Imagem: Galeria Digital da Biblioteca Pública de Nova Iorque.

[1] CAIRUS, José Antônio Teófilo.  Jihad, Cativeiro e Redenção: escravidão, resistência e irmandade, Sudão Central e Bahia (1835). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. p. 26. Pode ser encontrado em: Casadasafricas.org.

² Idem. Ibidem. p. 14.

³ Idem. Ibidem. p. 29.

Por Tales Pinto